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Da esperança aos escombros: haitianos e brasileiros são despejados da Ocupação Progresso no RS

5 de setembro de 2018
Grande parte das casas da Ocupação Progresso já estavam vazias e parcialmente demolidas | Foto por Joana Berwanger/Sul21

A chuva que caía no início da manhã desta terça-feira (4) era só mais um dos problemas enfrentados pelas famílias que permaneciam na Ocupação Progresso, no bairro Sarandi, em Porto Alegre. Os moradores foram acordados ainda na madrugada com um incêndio que atingiu três casas da comunidade, poucas horas antes do início da reintegração de posse do terreno, que já estava marcada para as 6h30. Por volta das 10h, ainda era possível sentir o cheiro da fumaça que saía das cinzas de uma casa totalmente consumida pelas chamas. Os moradores acreditam que o incêndio tenha sido criminoso, mas não apontam possíveis culpados.

Existente há quatro anos, a Progresso era formada por mais de 200 famílias, entre brasileiros e migrantes haitianos, que vieram de seu país em busca de uma vida melhor. Agora, todos encontram-se desabrigados e desesperançosos em relação ao Brasil. “Nós vamos ter que pagar outra casa pra morar, mas vamos deixar o Brasil. Queremos uma vida melhor, uma vida tranquila, com respeito. Eu não gosto mais do Brasil, não fico mais”, lamenta Pierre Widson, que chegou ao país há dois anos com a expectativa de ter uma vida melhor do que em seu país de origem, e atualmente trabalha na construção civil.

“É uma tristeza, um negócio desumano com a gente. Não deveria ser desse jeito, poderiam dar mais tempo, a gente ia sair e se ajeitar. Tem gente que tá indo ocupar outra área”

Enquanto a maioria das casas dos brasileiros era feita de madeira, as dos haitianos eram construídas com tijolo e concreto, algumas com uma fachada elaborada ou azulejos coloridos no interior. “Teve uma haitiana que gastou R$ 10 mil para fazer a casa dela, que ela juntou vendendo fruta. Eles, quando chegam, realmente constroem uma casa com a ideia de ficar morando nesse lugar”, conta a moradora Inajara Silva de Oliveira, que foi uma das primeiras a chegar à Ocupação, em 2014.

Ela se juntou à Progresso junto com toda a família: o pai, que atualmente tem uma deficiência física que o impede de andar, a filha, a irmã e a sobrinha, que teve febre alta durante a noite. As crianças e o idoso já não estavam mais no local durante a desocupação, foram levados para casas de parentes, segundo Inajara, para não precisarem lidar com o despejo, que aconteceu em meio à chuva e à lama. “É uma tristeza, um negócio desumano com a gente. Não deveria ser desse jeito, poderiam dar mais tempo, a gente ia sair e se ajeitar. Tem gente que tá indo ocupar outra área”, relata.

Incêndio atingiu a Ocupação durante a madrugada, poucas horas antes do despejo | Foto por Joana Berwanger/Sul21

Poucos moradores permaneciam no local nesta terça, a maioria já havia saído ao longo das últimas semanas, desde que ficaram sabendo da reintegração. “A gente estava saindo de forma pacífica, eles passaram todo o dia aqui com um carro de som. Fizeram pressão psicológica, crianças ficaram doentes. Não precisava tudo isso, ninguém é bandido aqui, estamos fazendo tudo na calma”, afirma Inajara.

“Tá sendo ruim, tem mulher dormindo dentro do carro, tem um vizinho bem velhinho que não tem para onde ir. Temos cadeirantes, crianças. Tem um monte de apartamento ali vazio e eles fazendo isso aqui com a gente”

O tenente-coronel Fernando Gralha Nunes, do 20º Batalhão da Brigada Militar, afirmou à reportagem que o carro de som tinha o objetivo de avisar da desocupação e dar tempo para as pessoas saírem das suas casas. “Mais de 90% das pessoas já tinham deixado a ocupação. Ao longo das semanas, nós fomos com um carro de som informando para eles que havia a determinação judicial, inclusive em francês, para que os haitianos também compreendessem a mensagem. Informamos da reintegração e a data que seria feita, e que até lá poderiam agendar os caminhões para transportar as mudanças e os materiais de construção”, relatou.

Durante a reintegração, não era possível retirar os materiais de construção, apenas os móveis. Algumas pessoas tentavam salvar pedaços de madeira e levar para o novo terreno, próximo ao local, onde já há uma nova ocupação. Uma família havia passado a noite em um carro, enquanto outras tiveram que ficar temporariamente em casas de parentes. “Tá sendo ruim, tem mulher dormindo dentro do carro, tem um vizinho bem velhinho que não tem para onde ir. Temos cadeirantes, crianças. Tem um monte de apartamento ali vazio e eles fazendo isso aqui com a gente”, relatou o morador Wilson Roberto Fontoura, referindo-se aos blocos do Minha Casa, Minha Vida que estão sendo construídos ao lado de onde ficava a Progresso.

A líder comunitária Ilisiane Vida contou que está em contato com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e a Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura para realizar o cadastro dos moradores e tentar conseguir algum benefício, como Bolsa Família ou encaminhamento para o aluguel social. “Vamos ver o que o município de Porto Alegre tem a dizer para esses haitianos que vão ficar na rua. Eu já consegui com vizinhos e amigos que alugassem casas, tem casas com seis, sete haitianos provisoriamente”, contou. O tenente-coronel Nunes disse que todo o processo de desocupação foi feito com acompanhamento da rede de assistência social, que é quem deve prestar auxílio às famílias agora.

Para os moradores, porém, isso não serve de consolo. “A sensação é de desolação, destruição, tragédia. A vida das pessoas estava consolidada há quatro anos, são crianças que não vão poder ir na creche, pessoas que vão faltar ao trabalho”, diz Ilisiane. Inajara confirma que as crianças estudavam em uma escola perto da Progresso e agora não sabem como irão concluir o ano letivo. Caminhando pelos escombros para mostrar o que havia sobrado das casas, Inajara olha em volta e lamenta: “Quando chegamos aqui, não tinha nada. A gente construiu tudo, e agora, depois de quatro anos, estamos vendo tudo destruído”.

Policiais exigiram que moradores recuassem quando retroescavadeira entrou para terminar as demolições| Foto por Joana Berwanger/Sul21

Na avaliação da Brigada Militar, o despejo ocorreu de forma pacífica. Por volta das 10h30, porém, o Pelotão de Operações Especiais (POE) formou um cordão e começou a exigir que os moradores que ainda estavam no local recuassem até o fim do terreno da ocupação, para que uma retroescavadeira pudesse passar e terminar de demolir as casas. “Isolamos o local, contendo tráfego de veículo e pessoas para segurança. Tem um maquinário pesado no local”, informou o tenente-coronel Nunes. Em certo momento, um policial empurrou um jovem, causando revolta entre os moradores. Intimidados, eles se encaminharam para fora dos limites da Progresso, de onde tentavam ver suas casas sendo destruídas.

“Nós, haitianos, viajamos para muitos países, e aqui no Brasil é diferente, porque tínhamos esperança de ter saúde, segurança, lugar onde morar, mas não tem. Mas é isso, a vida continua. Nós precisamos de respeito, só isso”

Mesmo com a situação precária em que viviam, sem acesso formal à luz e água — que eram conseguidas através de “gatos” –, os moradores pretendiam permanecer no local, tendo tentado comprar a área para regularizar a situação. “Era a vila que menos incomodava dentro de Porto Alegre”, afirma Edson Eduardo da Silva. Agora, em um outro terreno ocupado próximo ao local, a ideia é fazer uma cozinha comunitária para permitir a alimentação das famílias que estão se mudando para lá. Ao mesmo tempo, Ilisiane e outras lideranças do movimento de ocupações buscam soluções para aqueles em maior vulnerabilidade, como uma haitiana que tem problemas de saúde mental e vivia na ocupação com filho.

Ao longo da manhã, os moradores apenas observavam as movimentações de longe. As casas, em sua maioria, já estavam esvaziadas. Um grupo de haitianos conversava, ainda decidindo para onde ir. Pierre, um dos que melhor falava português, resumiu as frustrações do grupo: “Nós, haitianos, viajamos para muitos países, e aqui no Brasil é diferente, porque tínhamos esperança de ter saúde, segurança, lugar onde morar, mas não tem. Mas é isso, a vida continua. Nós precisamos de respeito, só isso”.

Veja mais fotos:

Foto por Joana Berwanger/Sul21
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Foto por Joana Berwanger/Sul21
Foto por Joana Berwanger/Sul21
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Foto por Joana Berwanger/Sul21

 

 

Por Débora Fogliatto

Fonte: Sul21