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O Crack não existe

17 de junho de 2017

Fonte: Le Monde Diplomatique

Por Daniel Mello, jornalista e militante d’A Craco Resiste

“Ato contra as ações higienistas” realizado no dia 26 de maio | Crédito: A Craco Resiste
“Ato contra as ações higienistas” realizado no dia 26 de maio | Crédito: A Craco Resiste

Encontrei de tudo na cracolândia nestes últimos meses em que frequentei intensamente o fluxo da Luz, na região central de São Paulo. Conheci viajantes, ex-caminhoneiros e estrangeiros. Escutei samba surgido de galão de água, lata de tinta e palma seca. Estive com mães fortes, pais desaparecidos e órfãos de família inteira. Ganhei uma pintura de presente e ouvi histórias de rir, de chorar e para pensar. Só não encontrei o crack. Vi muita gente fumando pedra em cachimbo, mas a droga demoníaca que transforma pessoas em seres sem alma, essa posso assegurar que não existe.

A crença, que mistura mistificação e desonestidade intelectual, de que existem pessoas possuídas, vagando pelas ruas e capazes de cometer qualquer barbaridade é o maior obstáculo na luta pela dignidade dessa população em situação de vulnerabilidade. Uma disputa que A Craco Resiste tem feito ao lado dos próprios envolvidos e outros grupos desde o início deste ano. A mobilização foi uma reação ao discurso agressivo do então eleito prefeito João Doria, que se materializou em bombas e balas de borracha.

Desde janeiro, vimos a violência da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana contra os frequentadores e moradores do fluxo se intensificar. As agressões sempre existiram. Há anos os braços armados da prefeitura e governo estadual são responsáveis por bater e humilhar aquelas pessoas. Mas, a partir do momento que isso foi declarado como um projeto da gestão municipal, os episódios extremos aumentaram. Tudo virou motivo para pancadaria generalizada. O roubo de um celular, a apreensão de uma cadeira, tudo acabava em gás lacrimogêneo, cacetadas e tiros, de munição menos letal ou não.

 

Uma guerra aos excluídos

A operação de guerra do dia 21 de maio, que envolveu atiradores de elite e centenas de agentes da Polícia Civil, foi apenas o desfecho de um projeto que acontecia. O terreno da opinião pública havia sido previamente preparado. Primeiro, foram para a televisão as imagens de um homem que assaltava próximo à cracolândia. Como se ali fosse o único lugar em que houvesse roubos no semáforo. Em seguida, surgiram gravações feitas pela própria polícia da feira de drogas, como se não se soubesse que existia o tráfico por ali há algumas décadas. A narrativa foi fechada com os flagrantes das armas no fluxo, fartamente exploradas pelos jornais.

Nos seis meses que frequentei o fluxo, na vigília organizada pelo coletivo, nunca vi uma arma de fogo. Não que elas não existissem. Não eram, no entanto, uma presença visível no território. Muito mais frequente eram as caixas de som portáteis, brilhando em neon, que passavam tocando funk no último volume. Apesar de que o gosto musical do fluxo era eclético. Lembro bem o espanto e admiração quando o clarinete do Chaiss abriu o jazz no Largo Coração de Jesus. Depois de meia hora de apresentação, alguns juravam que o som era melhor do que os entorpecentes vendidos na esquina.

Gostaram da banda, assim como curtiram a oficina de tambores, as rodas de samba, a capoeira e o Velozes e Furiosos 8. Era fácil perceber que estavam de braços abertos para toda a oportunidade de contato com algo que fosse além do oferecido por aqueles quatro quarteirões. A prática comprovando os experimentos do neurocientista Carl Hart, segundo os quais não é o crack que produz as cracolândias. Os aglomerados de usuários de drogas são um sintoma da incapacidade da nossa sociedade de acolher todas as pessoas. Isso fica ainda mais claro quando encontramos vários que nem fumam pedra, apenas bebem ou têm diagnósticos de transtornos mentais. São ainda mais frequentes, maioria, melhor dizendo, os ex-presidiários. Pessoas que muitas vezes chegaram ao crime pela quase absoluta falta de horizontes, mas que, após uma temporada na masmorra, querem a máxima distância de tudo que signifique risco de uma outra temporada atrás das grades.

Assim, vai crescendo o espaço dos completamente excluídos, desdentados e mal-vestidos. Se fosse o mau-cheiro o problema, teriam sido providenciados banheiros. Fosse o incômodo dos pedintes e pequenos furtos, a política de trabalho flexível e autonomia de renda teria ganhado a proporção necessária, não enfrentado fortíssima resistência. Por isso, falo de crença. Uma boa parcela da sociedade quer acreditar que aquilo é um pedaço do inferno para onde as almas foram arrastadas pelo pecado da droga maldita.

 

O projeto da cidade privada

Um discurso que serve muito bem ao senhor perfeito João Doria e o seu projeto de cidade vendida. As ruas fechadas, onde os sem perspectiva se sentam para não fazer nada são o oposto da beleza defendida entre os dentes brilhantes do político fantasiado de gestor. A proposta está rascunhada logo à frente, nas calçadas observadas de perto pelas câmeras de vigilância da Porto Seguro. A mega-empresa tem se apropriado do bairro para além dos diversos imóveis que possui na região. Parte do Bom Retiro é patrulhada pela equipe de segurança, devidamente identificada, que age abertamente contra a pequena criminalidade na área.

Quando passamos pelo suntuoso centro cultural construído pela empresa, a duas quadras de onde estava o fluxo antes da operação policial, começamos a entender porque a pressa em demolir os casarões da Alameda Dino Bueno. Nem se importaram de conferir se ainda tinham pessoas dentro, porque o projeto, entredito, é mesmo tirar tudo que existe por ali para dar espaço a essa nova forma de urbanidade. Um novo bairro, onde as calçadas e o asfalto são extensão das grandes empresas dispostas a investir na área. Uma cidade exclusiva para proprietários e consumidores.

Para caminhar por essas novas ruas será preciso aval de um mega-empregador ou cartão de crédito que credencie como comprador. Circular sem rumo preciso ou parar sem razão aparente pode atrair suspeitas das onipresentes câmeras que tudo filmam, mas que não admitem ser registradas. Um amigo uma vez tentou e quase teve o equipamento fotográfico quebrado pelos agentes de segurança da Porto Seguro.

A cracolândia é, então, simbólica e concretamente uma anti-cidade linda. Um lugar em que os que nunca conseguirão emprego, semi-vestidos e não bancarizados passam tardes e noites esquecendo como foram rejeitados. Apesar que ali também existe trabalho: os carroceiros, os vendedores de cigarro, os fazedores de cachimbo e os profissionais ocasionais. Histórias que o senhor perfeito Doria prefere que não sejam contadas.

Para poder varrer aquela população, é preciso que ela seja encarada como uma grande nulidade, incapaz de exercer qualquer tipo de razão. Somente sob essa narrativa é possível justificar violências extremas como a internação forçada, uma forma comprovadamente ineficiente de cuidado. Só faz sentido nesse contexto, em que o objetivo principal é fazer sumir os indesejados ao projeto do público cooptado pelo privado.

O instrumento pode parecer diferente, quando o caminho para as clínicas e comunidades terapêuticas é um convite aparentemente amigável, como o feito pelos carros de som que atualmente circulam pelo centro paulistano. Porém, quais são as oportunidades disponíveis para um ex-presidiário mal escolarizado depois de desintoxicado?

O modelo, que envolve parcerias com organizações sociais é eficiente para transferir recursos públicos para entes privados. As altas taxas de recaída demonstram, no entanto, que a lógica do combate ao vício faz pouco pelas pessoas. Por isso, as experiências mais bem-sucedidas para encarar esse tipo de situação em outras partes do mundo atentam para pontos como a oferta de moradia e a redução dos danos associados às drogas. Fundamental ainda, entender que os envolvidos precisam ser escutados e atendidos, em alguma medida, nas suas necessidades específicas e individuais.

É nessa disputa simbólica que os movimentos sociais reivindicam resistência. A cracolândia não são os prédios, não são as ruas, são uma população unida como estratégia de defesa das suas vidas constantemente agredidas. É junto com elas que a Craco Resiste, por uma política que tenha como princípios a autonomia e o cuidado em liberdade.

Leia também o primeiro artigo da série do Le MondeRegião da Luz em disputa: mapeamento dos processos em curso