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Para entender a tragédia da Ocupação Colonial

14 de fevereiro de 2017

Fonte: Jornalistas Livres

Como o poder público municipal poderia ter intervido na reintegração de posse que deixou cerca de 700 famílias na rua

Por Mariana Zoboli do Carmo

No último dia 17 de janeiro ocorreu a reintegração de posse da Ocupação Colonial, em São Mateus, zona leste de São Paulo, onde aproximadamente 700 famílias foram desalojadas de seus lares, construídos a cerca de dois anos no local.

Esta é uma situação complexa, em que diversas perspectivas dialogam. Há a demanda do proprietário, a ação do judiciário e do poder público municipal, a voz os ocupantes, a conduta dos executores da reintegração, que são as forças policiais envolvidas e o promotor de justiça, bem como de toda a sociedade civil que deve zelar pela devida aplicação dos direitos conquistados pela coletividade. Portanto, para compreender, não esquecer e dar a devida dimensão ao fato que deixou mais de 3 mil pessoas desabrigadas é necessário dar voz cada uma das forças ali atuantes.

Condução

Não existe nenhuma norma no direito brasileiro que regularize a conduta do poder público e de seus agentes em uma reintegração de posse. O que há é um direcionamento da ONU, elaborado pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1997, que pode ser adotado ou não.

O Comentário Geral n º 7 sobre o Direito à Moradia Adequada: Despejo Forçado, em seu item 04, “define despejos forçados como a remoção permanente ou provisória, contra a vontade dos indivíduos, famílias, comunidades das residências que ocupam, sem provisão das formas apropriadas de proteção legal ou de outra índole. O Estado, antes de realizar qualquer remoção forçada, especialmente as que envolvem grandes grupos de pessoas, é obrigado a explorar todas as alternativas possíveis, consultando as pessoas afetadas, a fim de evitar ou minimizar o uso da força ou impedir o despejo.”*

Na prática, ocorreu que durante a desocupação dos terrenos o oficial de justiça e os policiais militares chegaram ao local no início da manhã. Conforme vídeo publicado pelos Jornalistas Livres, o  oficial se recusava a esperar uma hora e meia, até que o Fórum fosse aberto e o juiz pudesse apreciar um pedido do Ministério Público de suspensão da reintegração. Ele alegou que o tempo do contingente policial ali presente não poderia ser desperdiçado no aguardo da decisão capaz reverter todo o cenário.

Em casos de reintegração de posse, o oficial de justiça tem plenos poderes para conduzir a ação, que normalmente pode perdurar até às 18h, horário do fim do expediente. O uso do tempo dos policiais como argumentação para o cumprimento acelerado do mandato não possui qualquer apoio jurídico. Era uma decisão facultativa e o representante optou por cumprir com a reintegração, excluindo qualquer possibilidade de defesa dos ocupantes, que não tinham para ir.

Abusos

De acordo com o advogado que está cuidando do caso, Benedito Roberto, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, os ocupantes foram intimidados quando notificados da reintegração, que apenas o oficial de justiça é encarregado de realizar.  Na Colonial, foi relatada na ocasião a presença de um grande contingente policial, sem qualquer motivo que a justificasse.
A Colonial ocupava a área de dois terrenos, de donos diferentes, e também foi observado pelo advogado que apesar de serem duas ações judiciais distintas e que, portanto, tramitam em tempos desiguais, as reintegrações foram curiosamente realizadas em conjunto. Outro ponto destacado dos entremeios judiciais é a audiência de conciliação entre as partes que deveria ter sido realizada, já que, a liminar foi dada a mais de um ano, mas ela foi rejeitada pelo juiz.

As famílias da Colonial sequer foram cadastradas previamente pela prefeitura em programas de moradia e não receberam bolsa aluguel.  Depois que a reintegração já havia sido cumprida, a prefeitura emitiu um comunicado dizendo que cada um procurasse se inscrever nos programas de habitação pela internet. Não foi oferecido nenhum tipo de auxílio por parte do poder municipal e todos os que habitavam a Ocupação Colonial ficaram na rua, sem nenhum direcionamento após terem os lares destruídos. Além dos policiais presentes, a Tropa de Choque também foi envolvida no processo, dada a resistência dos ocupantes em deixarem suas habitações nestas condições, de completo desamparo.

Os caminhões de mudança foram insuficientes, não havia ambulâncias para atender qualquer emergência e o Conselho Tutelar não compareceu para cuidar da transferência escolar das crianças e adolescentes. Não existia estrutura para lidar com uma reintegração deste porte, envolvendo 700 famílias, mais de 3 mil pessoas, de acordo com o descrito por Benedito.

Legitimidade

O que distingue uma ocupação de uma invasão a propriedade privada é a função social do imóvel ou terreno em questão. Este é um conceito previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 182) e ele coloca que toda posse deve servir também a interesses sociais e não somente ao proprietário.

“É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de

  • Parcelamento ou edificação compulsórios;
  • Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
  • Desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”

Confira o artigo na integra aqui.

Portanto há de se analisar a situação do imóvel e em que condições ele estava antes de ser ocupado. A área da Colonial, que envolve dois terrenos particulares, estava sem aproveitamento há mais de 20 anos e, portanto, sua ocupação é legítima. Outro fator é o conceito de ZEI (Zona Especial de Interesse Social), que estabelece por toda a cidade de São Paulo, de acordo com plano diretor, áreas destinadas à construção de Habitações de Interesse Social (HIS), regularização fundiária e urbanização de favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais populares.

A área da Ocupação Colonial está total ou parcialmente zoneada em uma ZEI 5, de acordo com a Lei 16402-16, que pode ser acessada aqui. Portanto, era um local desocupado e ocioso, destinado pela prefeitura a aplicação de políticas de habitação e, portanto, poderia ser por ela reformado.

Tanto a garantia do cumprimento da função social do imóvel, quanto à implantação das ZEIs são facultadas a prefeitura, de acordo com o Estatuto das cidades, que, após a redemocratização, descentralizou questões relativas à urbanização e habitação dando mais autonomia aos municípios, por meio da instituição do plano diretor estratégico. Ele também deu a possibilidade de intervenção do poder público municipal sobre o patrimônio privado em detrimento do bem comum e da criação de políticas de habitação e urbanização.

Socorro

O tratamento dispensado às famílias não demonstrou nenhuma vigilância ou respeito aos direitos humanos. Deixou completamente desamparada uma população altamente vulnerável, que não tem respeitado sequer o direito social básico à habitação. A reintegração de posse da Ocupação Colonial é mais uma tragédia para os direitos conquistados historicamente, principalmente pela população mais carente dos centros urbanos.

De acordo com o plano diretor é dever das prefeituras garantir o desenvolvimento das cidades e a função social da propriedade, lançando mão de políticas inclusivas, intervindo em situações como esta e zelando pelo combate à especulação imobiliária, justa distribuição dos serviços públicos, a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária e soluções planejadas e articuladas para os problemas das cidades.

É legítimo o pedido de reintegração feito pelos donos dos terrenos, contudo, sua aplicação está longe de ser apenas uma decisão judicial. O que foi visto na reintegração da Ocupação Colonial pode ser apreciado também do ponto de vista político, pois o acesso à moradia é um direito social fundamental, garantido pela Constituição de 1988, sendo dever da poder público municipal zelar por ele, garantindo mecanismos de acesso à habitação digna aos mais vulneráveis.

A Prefeitura de São Paulo, na primeira reintegração de posse do mandato de João Dória, se omitiu e não assegurou os direitos dos ocupantes, tanto no que diz respeito à realização de políticas e ações voltadas ao direito à habitação e a proteção dos mais necessitados, quanto na oferta de uma estrutura adequada durante a desocupação que desalojou mais de 3 mil pessoas.


* Trecho do artigo de Nelson Saule Jr. e Patrícia de Menezes Cardoso “OBSTÁCULOS E PRESSUPOSTOS PARA A GARANTIA DO DIREITO HUMANO À MORADIA NO BRASIL – A Gravidade dos Despejos”, que pode ser acessado aqui.