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“Para a gestão Doria, o que importa na Cracolândia é a questão territorial”

26 de junho de 2017

Fonte: CartaCapital

Por Débora Melo

Antropólogo critica métodos da Prefeitura de São Paulo e afirma que atenção aos usuários de drogas deveria ser prioridade

Foto por Leon Rodrigues/Secom
Agentes retiram barracas e usuários da Praça Princesa Isabel, a nova Cracolândia, em 11/6 | Foto por Leon Rodrigues/Secom

A gestão João Doria (PSDB) na Prefeitura de São Paulo tem optado pelo caminho mais fácil para lidar com a Cracolândia. Varrer usuários de drogas e promover uma “limpeza” urbana é mais simples do que investir no cuidado e no resgate da dignidade dos cidadãos. Essa é a opinião do antropólogo Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

A promessa de extinguir o “fluxo”, como é chamada a área em que se concentram os usuários, hoje fixada na Praça Princesa Isabel, tem se revelado uma prioridade do prefeito, potencial candidato do PSDB à Presidência da República nas eleições de 2018. “Acabar com a Cracolândia é uma promessa que o Doria precisa cumprir com certa rapidez”, diz Fiore. “A ideia parece ser apresentar, até o fim deste ano, aquela região limpa, ‘linda’”.

Em entrevista a CartaCapital, Fiore comenta as estratégias da prefeitura com o programa Redenção, critica a falta de planejamento em saúde e assistência social e cobra transparência na utilização de recursos. Por fim, o antropólogo analisa o apoio de parte da sociedade a ações repressivas e afirma que a Cracolândia “irrita o sentido moral” do paulistano. “Há também um aspecto higienista: o problema que não existe é o problema que eu não vejo.”

CartaCapital: Após a operação policial do dia 11 de junho na nova Cracolândia (Praça Princesa Isabel), o prefeito João Doria disse que “a abstinência provocada pela ação da polícia facilita o resgate das pessoas”. Como você avalia essa estratégia?

Maurício Fiore: Essa é uma concepção equivocada. Não há evidência alguma de que isso possa ocorrer. Claro que, residualmente, pode ser que alguém busque tratamento, mas com a maior parte das pessoas isso não vai acontecer. Naquele dia, o “fluxo” mudou provisoriamente de lugar, foi feita a limpeza e às três da tarde estavam todos de volta à praça. Então o prefeito tem reafirmado o seu compromisso de acabar com a Cracolândia no sentido físico. A ênfase é muito mais no espaço do que nas pessoas.

CC: Parece que o tema sempre esteve dominado por essa confusão entre a questão territorial e a questão da saúde…

MF: Eu venho dizendo isso há bastante tempo. Essa confusão ficou mais evidente na gestão [Gilberto] Kassab, mas também esteve presente nos governos Marta [Suplicy] e [José] Serra e, de alguma forma, na gestão [Fernando] Haddad. Agora acho que já nem é confusão, é quase um programa. Na gestão Doria, o que importa na Cracolândia é a questão territorial.

Mauricio Fiore
‘O uso problemático de crack e álcool exige um trabalho de longa duração, de estabelecimento de vínculos’, diz Fiore

É claro que esses dois temas estão entrelaçados, mas eles têm que ser discutidos separadamente. A discussão da cidade é legítima: os moradores da região devem ser ouvidos, o direito ao espaço público deve ser debatido, assim como a violência e a criminalidade na região. Não se trata de negar a existência desses problemas. Mas, para ajudar aquelas pessoas, para tentar dar a elas outra perspectiva de vida, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista da saúde, temos que seguir outro caminho, um caminho muito mais difícil.

Embora existam pressões e interesses imobiliários, o caminho territorial é muito mais simples. A questão do uso problemático de crack e álcool exige um trabalho de longa duração, de estabelecimento de vínculos, e envolve tratamentos diversos. Eu considero muito importante oferecer moradia, o que na literatura mundial é chamado de Housing First, e a partir daí você faz uma abordagem com foco na saúde, uma abordagem em relação ao uso de drogas.

É demorado, é mais caro e é mais difícil. E é também mais complexo no sentido da ocupação da cidade, porque aquelas pessoas não vão desaparecer de uma hora para outra. A não ser que apelem para medidas de caráter mais higienista, como a prefeitura tentou fazer com a internação compulsória.

CC: Levando em consideração a importância de oferecer moradia aos usuários em situação de rua, como você avalia a iniciativa da prefeitura de instalar contêineres na região?

MF: Eu não vejo problemas na criação de um serviço emergencial, como o próprio nome diz [Unidade de Atendimento Emergencial]. Mas não está muito claro o objetivo dos contêineres. As pessoas passam por esse tipo de serviço estão sendo encaminhadas para tratamento. Mas esse tratamento é sempre a internação, sempre com o objetivo de tirá-las de lá.

Essa lógica não me agrada e acho que não faz sentido se pensarmos no que vinha sendo feito para ajudar as pessoas. Claro que o De Braços Abertos [programa de Haddad para a Cracolândia com foco em redução de danos] tinha problemas, mas também tinha princípios que eram corretos e que estavam caminhando na direção correta.

O Redenção não foi lançado, então não sabemos o que o programa envolve. Está mais do que claro que houve uma falta de planejamento, porque o programa começou a ser desenhado após a operação da polícia. E a maneira como feita a ação policial desestabilizou e cortou a relação com os usuários, dificultando ainda mais a abordagem. Nós pedimos informações para a prefeitura e ainda aguardamos parte das respostas.

O que a gente percebe, até pela existência de carros de som com mensagens do tipo “venha se tratar” nas proximidades do fluxo, é que a prefeitura tem uma visão simplificada das pessoas que estão lá. O fluxo tem diversas características: tem o tráfico intenso, mas de certa forma é também uma diversão constante, embora seja um drama permanente. É o drama e a diversão sempre lado a lado. É complexo. O carro de som pode vir a estimular alguém, mas é residual, são exceções. Normalmente o processo é muito mais longo.

CC: O secretário municipal da Assistência Social, Filipe Sabará, disse que a prefeitura vai ampliar a política de pagar passagens de ônibus a pessoas em situação de rua ou usuários de drogas que queiram retornar às suas cidades de origem. Ele publicou um vídeo nas redes sociais levando um homem à rodoviária. É uma política pública aceitável?

MF: Se a pessoa vem para São Paulo e se vê em uma situação difícil e precisa de ajuda para voltar, acho que é uma política pública totalmente válida. Isso é uma coisa. Ampliar essa política no âmbito dessas operações policiais na Cracolândia e no âmbito do crescimento da população em situação de rua em São Paulo, que é visível, é outra coisa.

No caso do uso problemático de drogas, isso não só é uma política higienista como pode ter consequências para a vida dessas pessoas. Não podemos esquecer que elas muitas vezes romperam vínculos familiares e que esse retorno pode causar novos traumas.

Só fazendo um parêntese, eu entendo o uso do vídeo e das redes sociais na política, acho uma boa ferramenta de prestação de contas, mas transformar isso em espetáculo, usando o sofrimento alheio, é muito ruim. É a ideia de Estado enquanto entidade beneficente, e não como aquele que deve garantir e promover direitos.

CC: O psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do Redenção, disse à imprensa que é possível que, no futuro, a cidade tenha salas de uso seguro de drogas, como acontece em alguns países. Considerando que o programa se baseia principalmente na abstinência, você observa alguma mudança de rumo nas estratégias da prefeitura com o passar dos dias?

MF: Acho que sim. As questões técnicas estão sendo refeitas a partir das pressões da sociedade civil e da não-solução do problema. As pesquisas mostram que a sociedade apoia medidas drásticas, mais repressivas, ao mesmo tempo em que boa parte dela não acredita que essas medidas darão resultado. Então existe a sensação de que a política pode ser considerada fracassada, e isso estimula uma abertura em busca de elementos da academia, notáveis, a fim de desenhar um princípio técnico mais elaborado.

A princípio eu não acho isso ruim, mas o próprio Arthur Guerra dá declarações muito diferentes entre si. Depois de assumir essa vaga ele defendeu a internação compulsória, disse que não internar é omissão de socorro, mas agora fala em espaços de uso seguro.

Eu vejo a discussão com bons olhos, mas eu mesmo tenho várias ressalvas se essa política funcionaria no caso da Cracolândia, porque não é uma situação semelhante às salas de uso que existem na Europa e no Canadá, onde a droga mais consumida é a heroína. Quando você vê que há ambiguidade no discurso do Arthur Guerra, você entende que a coisa está muito solta.

Para mim, mais assustador que a ação da polícia e mais assustador do que derrubar casa com gente dentro foi o pedido para internar [em massa]. Havia ali uma intenção. Foi feito um pedido oficial com o nome de “busca e apreensão”, algo que não se aplica a pessoas, pedido mal feito, com um conceito sobre dependência totalmente ultrapassado, de ordem muito mais moral do que científica e médica, e que permitiria que os agentes de saúde e da GCM levassem pessoas para instituições de saúde, à força.

Esse desejo ficou claro nos primeiros dias da ação. Espero que o programa ganhe contornos mais sólidos de assistência e de saúde, mas a intenção da prefeitura de tirar as pessoas da rua está muito clara desde o início.

CC: Levando em consideração que programas como esse precisam de dinheiro, como você avalia o repasse de 25 milhões de reais do governo federal para o Redenção, repasse intermediado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, comandado por Osmar Terra, defensor da internação?

MF: Esse repasse precisa ser aplicado com transparência. Nós precisamos saber para onde vão esses recursos, se vão para o serviço de acolhimento da Assistência Social ou se vão para as comunidades terapêuticas, que ele [ministro] defende abertamente.

O que chama a atenção é que, mesmo em um ministério importantíssimo, que tem simplesmente o Bolsa Família para cuidar e aperfeiçoar, o Osmar Terra colou sua ação política na questão das drogas e agora aproveita politicamente essa discussão sobre a Cracolândia. É uma ação oportunista, ele não perderia essa chance na Cracolândia tendo a caneta do ministério. São Paulo tem problemas sociais gravíssimos, mas o ministro da Assistência Social continua fazendo da sua plataforma política a questão das drogas.

CC: E o prefeito também tem feito da Cracolândia uma prioridade…

MF: A promessa de acabar com a Cracolândia é uma promessa que o Doria precisa cumprir com certa rapidez, então ele vai priorizar esse tema. Ele precisa dar essa resposta, ele é um presidenciável e tem uma promessa a cumprir, o que também pode ser uma armadilha dado o histórico da Cracolândia.

Se esse repasse do governo federal fosse pensado para aumentar os serviços de assistência e de saúde, poderia ser algo positivo a tirar desse processo, que é um processo político antes de qualquer coisa. Mas a ideia não parece ser essa. A ideia parece ser apresentar, até o fim do ano, aquela região limpa, “linda”.

CC: Se a internação é mais cara e menos eficaz que as políticas de redução de danos, como demostram diversos estudos, por que a insistência de vários governos nessa estratégia?

MF: Eu não trabalho com tratamento, é importante dizer, mas eu não demonizo a internação, acho que muitas pessoas podem ter resultados positivos. A internação é baseada em um princípio de proteção e tem um apelo político forte, mas é uma proteção artificial, porque afasta a pessoa do seu contexto e da substância.

Então a gente sabe, pela literatura, que, por ser artificial, o efeito da internação, no longo prazo, é pequeno – e eu estou falando apenas da boa internação, na qual a pessoa é assistida por médicos e psicólogos e tem atividades que não sejam de trabalhos forçados ou atividades religiosas forçadas. Ao tirar a pessoa da zona artificial de cuidado, a chance de uma recaída é alta.

CC: Existe também um interesse econômico, certo?

MF: Existe esse interesse. Não dá para dizer que é um interesse de todos os envolvidos no tema, mas, sim, há muita gente que sabe que leitos de internação rendem. Essas entidades são basicamente entidades privadas, que também recebem repasses públicos.

CC: Como você enxerga as manifestações de alguns setores da sociedade que aplaudem não só a repressão policial como também a “limpeza” urbana?

MF: Eu gostei de uma observação que o Mauro Paulino, do Datafolha, fez. Ele disse algo um tanto óbvio, mas que é verdade: a Cracolândia é uma ofensa moral aos paulistanos. A ideia de ter um espaço onde as pessoas usam drogas e ficam sem trabalhar irrita o sentido moral do paulistano.

Então muitos se perguntam: por que dar atenção para aquele espaço onde as pessoas usam crack? Dizem que é melhor dar assistência aos pobres, que merecem mais. É um dilema moral que surgiu na época do De Braços Abertos e que não é irrelevante. Por outro lado, há também um aspecto higienista: o problema que não existe é o problema que eu não vejo.