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Entrevista com Guilherme Boulos | “Nem todo eleitor de Bolsonaro é ‘fascista’, racista e machista”

21 de outubro de 2018

Para Boulos, é preciso ‘falar com a alma do povo’, explicar que Bolsonaro é farinha do mesmo saco dos políticos velhacos e vai roubar direitos

Boulos e Haddad. “Da minha parte não haverá vacilação. Tenho lado e coerência, e este lado é o que pode derrotar a barbárie” | Foto por Rodrigo Stuckert

Se havia de fato um outsider na campanha do primeiro turno à Presidência, este era Guilherme Boulos (PSOL), saído do movimento de ocupação de prédios abandonados em São Paulo diretamente para a disputa da cadeira de Temer, esta, sim, ilegitimamente ocupada desde o golpe de 2016.

Coube ao candidato do PSOL, nanico em seus 618.382 votos, a fala mais gigante da campanha de 2018. “O momento é grave”, começou ele, no debate da Globo, emocionado. “Estamos há meses em uma campanha marcada pelo ódio. Faz 30 anos que este país saiu de uma ditadura. Muita gente morreu, muita gente foi torturada. Tem mãe que não conseguiu enterrar o filho até hoje. Se estamos hoje discutindo o futuro do Brasil é porque gente derramou sangue para isso. Quando eu nasci, o Brasil estava numa ditadura. Não quero que minhas filhas cresçam numa ditadura. Sempre começa assim. Acho que a gente tem de dar um grito, um basta: ditadura nunca mais!”

Foi aplaudido e mereceu, diante do Haddad com quem já ensaiava ali uma dobradinha.

Boulos sabia não ter a menor chance na disputa. De fato, teve menos da metade dos votos de Daciolo, o cabo das tormentas.

Credita a pior performance do PSOL numa eleição presidencial ao “clima de medo e de ódio” que se instalou no Brasil, eliminando sua “mensagem de esperança”, e a “um quase desespero de voto útil contra Bolsonaro” nos dias que antecederam a votação.

Tornou-se aquele em que boa parte dos eleitores progressistas gostariam de ter votado, mas estes não o fizeram. Com uma campanha que “tomou lado, não baixou bandeira, não negociou princípios”, acha que plantou sementes. “O tempo da colheita nem sempre é o que a gente quer, mas o resultado eleitoral foi muito aquém das expectativas.”

Logo na terça-feira, 9, Boulos definiu formalmente seu apoio a Haddad no segundo turno. “Não tem meio-termo”, diz. “O muro caiu e todo mundo vai ter de tomar lado.” Promete agora mobilizar as ruas com seu Povo Sem Medo, porque é preciso urgentemente “criar o clima da virada”.

Sugere ouvir menos os marqueteiros e “falar com a alma do povo”. Alertar para o fato de que “Bolsonaro não é solução para a descrença na política, porque é parte do problema”. E que “ele quer botar a mão nos nossos direitos, porque isso é verdade”.

A seguir, uma entrevista do outsider por dentro da campanha de Haddad. 

CartaCapital: Como o senhor recebeu o resultado geral das eleições?

Guilherme Boulos: Com preocupação, naturalmente. O pior erro que a esquerda pode cometer neste momento é achar que todo mundo que vota no Bolsonaro é fascista, racista, machista. Não é isso, não. A maioria de seus eleitores é de pessoas desiludidas com um sistema político que faliu. Eles deram um grito de desespero. Ainda que de uma maneira totalmente farsesca, Bolsonaro buscou apresentar-se como um cara contra o sistema, e é esse registro que ficou. Para ganhar a batalha do segundo turno, vai ser preciso saber dialogar com essas pessoas.

Bolsonaro não é um adversário numa eleição. Ele é um adversário da democracia, é alguém que exalta a tortura e tem por ídolo o coronel Brilhante Ustra. É uma pessoa que, na votação do impeachment, teve a perversidade de votar em homenagem ao cara que comandou as torturas mais atrozes contra a Dilma.

CC: Ainda que Bolsonaro tenha se apresentado como o antissistema, por que a vitória de seu campo foi tão avassaladora?

GB: Esta foi uma eleição, em seu primeiro turno, marcada por dois sentimentos: pelo ódio e pelo medo. A esperança e a coragem tiveram muito pouco espaço. E quando ódio e medo determinam os polos de um debate eleitoral, a coisa nunca vai bem. O que levou a essa expressiva quantidade de votos tanto em Bolsonaro quanto na bancada que ele elegeu foi precisamente a exploração política desse medo, que Bolsonaro conseguiu produzir não apenas durante o período eleitoral, mas bem antes dele. 

CC: O que vimos no domingo foi de certa forma a implosão do sistema que desde sempre se prenunciou diante dos avanços da Lava Jato?

GB: A Lava Jato, sem dúvida, teve sua cota nesse sentimento de descrença com a política. Sua condução, de maneira politizada e parcial, cumpriu e cumpre papel nesse estado de coisas. Agora, eles podem ter estimulado um processo do qual também não têm controle.

A vitória do Bolsonaro significaria algo tão grave, que mesmo as ditas autonomias de investigação do Ministério Público e da Polícia Federal seriam desmontadas. Ou alguém acha que Bolsonaro no governo permitiria algum tipo de investigação independente? Eu disse isso num debate: soltar pit bull é fácil, difícil é prender depois. E tem muita gente que ajudou a soltar pit bulls, mas já começa a ser mordido na canela.

CC: É o caso do PSDB?

GB: O PSDB é parte disso e foi destroçado nesta eleição, como consequência de um golpe que o partido ajudou decisivamente a produzir a partir do não reconhecimento de um resultado eleitoral quatro anos atrás. Agora, estamos numa encruzilhada muito grave.

Este segundo turno talvez seja o momento mais importante da democracia brasileira nos últimos 30 anos. O que está em jogo não é apenas uma disputa eleitoral, mas o futuro da próxima geração. Em 20 dias decidiremos 20 anos no Brasil. A vitória de Bolsonaro significaria a vitória de um projeto de ditador.

Bolsonaro cresceu por redes de WhatsApp espalhando fake news. Uma forma de atuação muito parecida com a que elegeu Trump nos Estados Unidos, e que foi revelada no escândalo da Cambridge Analytica

Bolsonaro não é um adversário numa eleição. Ele é um adversário da democracia, é alguém que exalta a tortura e tem por ídolo o coronel Brilhante Ustra. É uma pessoa que, na votação do impeachment, teve a perversidade de votar em homenagem ao cara que comandou as torturas mais atrozes contra a Dilma.

Isso tudo me faz lembrar a famosa reunião para a assinatura do AI-5, em 1968, em que o ministro civil Pedro Aleixo demonstrou alguma hesitação. Os militares então perguntaram se ele não confiava neles. “Em vocês eu confio”, teria respondido, “o problema é o guarda da esquina.” Este é o problema: se Bolsonaro ganhar a eleição, o policial acostumado a cometer abusos vai se sentir livre para fazer o que quiser. Isso já começou. Veja o capoeirista morto na Bahia com 12 facadas porque disse que votou no PT.

CC: Desde a facada, Bolsonaro não fez campanha. Mesmo sua propaganda subterrânea na internet é algo novo. Como se contrapor a isso?

GB: Bolsonaro cresceu por redes de WhatsApp espalhando fake news. Uma forma de atuação muito parecida com a que elegeu Trump nos Estados Unidos, e que foi revelada no escândalo da Cambridge Analytica (empresa de análise de dados virtuais de consumidores usada por Trump para influenciar o voto na eleição).

Algum dia talvez a gente ainda vai descobrir quem é a Cambridge Analytica do Bolsonaro. Agora, eu gostaria de voltar à história do nosso discurso. Eu moro no Campo Limpo, periferia de São Paulo. Ontem, estava indo para casa e parei para comer um pastel e um caldo de cana. Um jovem de 20 anos veio me abordar, de maneira respeitosa.

Disse que tinha gostado da minha postura nos debates e me perguntou quem eu ia apoiar no segundo turno. Falei que era o Haddad e ele olhou com cara feia, tinha votado no Bolsonaro. Perguntei o porquê, ele falou de segurança, disse que gostaria de ter uma arma.

Eu contrapus com exemplos: “Imagine se estamos eu e você aqui, cada um com uma arma na cinta, eu falo uma coisa que você não gosta, você fala uma coisa que eu não gosto…” Ele disse que Bolsonaro ia acabar com a verba de gabinete, então contei para ele o que foram os 27 anos de mandato do deputado.

Tem de mostrar que em 27 anos de vida pública ele [Bolsonaro] enriqueceu, comprou cinco imóveis e só aprovou dois projetos. Tem de mostrar que ele tinha uma funcionária fantasma paga com dinheiro público, que usava auxílio-moradia tendo casa, que nunca abriu mão das verbas de gabinete que ele diz ser contra.

Ele foi fazendo uma cara de surpresa. Veja, a forma de dialogar com essas pessoas não pode ser a partir da gramática da esquerda. Se a gente ficar tentando falar com elas a partir dos nossos temas, nós não vamos virar esse jogo.

CC: Que temas então devem ser abordados?

GB: Dois temas basicamente. Primeiro, o Bolsonaro não é um cara de fora do sistema. Ao contrário, ele é o cara do sistema, farinha do mesmo saco. Tem de mostrar que em 27 anos de vida pública ele enriqueceu, comprou cinco imóveis e só aprovou dois projetos. Tem de mostrar que ele tinha uma funcionária fantasma paga com dinheiro público, que usava auxílio-moradia tendo casa, que nunca abriu mão das verbas de gabinete que ele diz ser contra.

Esse discurso foi pouco feito, enquanto se ficou o tempo todo chamando o cara de fascista. O segundo ponto é a questão dos direitos: Bolsonaro votou pela reforma trabalhista, quer retirar direitos dos trabalhadores. Votou pelo congelamento de investimentos sociais. O vice dele já disse que é contra 13o salário e férias. Seu economista já manifestou o desejo de aumentar o Imposto de Renda para famílias pobres que hoje são isentas. Nada disso chegou nas pessoas, e a campanha do segundo turno precisa ser portadora dessas mensagens.

CC: É preciso buscar todo tipo de apoio e construir uma frente ampla pela democracia?

GB: O Haddad só vai conseguir ganhar esta eleição se falar com a alma do povo. Achar que a frente ampla que tem de ser feita significa sinalizar ao mercado, isso é o maior erro do mundo. A Bolsa já está com Bolsonaro, as finanças e boa parte do empresariado já estão com Bolsonaro, o que é mais uma demonstração do que é a elite econômica deste país, a elite da casa-grande. A ampliação, neste segundo turno, não é chamar o Meirelles.

A ampliação precisa ser para o lado do povo. O negócio é falar com os milhões de pobres, com as periferias que votaram no Bolsonaro. Se cede agora ao mercado, apenas reforça o falso discurso de Bolsonaro de que ele é o antissistema. Veja o que foram as eleições nos Estados Unidos: Hillary perdeu para Trump, em boa medida, por ser reconhecida como a candidata de Wall Street. É o pior que pode nos acontecer.

Nesta hora não há meio-termo, e da minha parte não haverá vacilação. Tenho lado e coerência, e esse lado é o que pode derrotar a barbárie. Vou ajudar a mobilizar. Já temos data para ir para as ruas com a Frente do Povo Sem Medo, vou rodar o País numa campanha-movimento.

CC: É preciso buscar o centro para se ter chance de vitória?

GB: Se esta eleição mostrou alguma coisa, foi que o centro político no Brasil desapareceu. Quem quis caminhar para o centro no primeiro turno não foi bem-sucedido.

CC: Qual a estratégia, então, além de abordar os temas que sugeriu?

GB: A campanha de rua. Temos de criar o clima da virada. As pessoas estão acuadas. Os que defendem a democracia, a militância de esquerda e os movimentos sociais estão acuados neste momento, e não podem continuar assim. É preciso agora estar nas ruas para dar demonstração de força, levantar o moral da resistência.

CC: O sentimento antipetista foi minimizado por Lula e o PT?

GB: Ele sempre esteve ali, né? Mas a campanha do primeiro turno fez reacender uma parte do antipetismo que estava silencioso. O evento da facada fez isso primeiro. Depois, as campanhas de alguns candidatos passaram a dizer que PT e Bolsonaro eram duas faces da mesma moeda. Você pode ter, como eu, muitas divergências com o PT. Mas daí a alimentar esse tipo de discurso só para ter vantagens eleitorais é de uma enorme irresponsabilidade histórica.

CC: Corre a notícia de que Haddad deve visitar Lula com menos frequência, transmitindo uma ideia de independência. É uma boa estratégia?

GB: Isso é algo que o PT terá de discutir, mas me parece um erro tratar Lula como passivo eleitoral. Veja a rapidez com que se transferiram votos de um a outro, e parte disso ainda nem ocorreu.

CC: Como o senhor deve se engajar na campanha?

GB: Nesta hora não há meio-termo, e da minha parte não haverá vacilação. Tenho lado e coerência, e esse lado é o que pode derrotar a barbárie. Vou ajudar a mobilizar. Estou há 17 anos no movimento social, estivemos na linha de frente das principais mobilizações do País nos últimos anos. Já temos data para ir para as ruas com a Frente do Povo Sem Medo, vou rodar o País numa campanha-movimento. Temos chance se ouvirmos menos os marqueteiros e formos capazes de falar com a alma do povo e mobilizar a sociedade.

CC: O senhor acha mesmo que Haddad consegue falar com a alma do povo?

GB: (Risos) Ele tem de se esforçar, e nós vamos fazer isso juntos.

CC: Ciro vem junto para valer? Marina ainda é possível?

GB: Não tem meio-termo, o que é isso? Não tem muro num momento como este. O muro caiu, e todo mundo vai ter de tomar lado. 

 

 

por Fred Melo Paiva

Fonte: Carta Capital