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Crônica de uma ocupação urbana | A Utopia possível ao alcance das mãos

9 de junho de 2018

Um dia na ocupação 9 de Julho, do MSTC, no Centro de São Paulo. Onde o sonho parecia realidade

Foto por Rafael Mendonça

Trata-se de um enclave no meio de São Paulo. No fim da rua Augusta, quando ela muda pra Martins Fontes, você quebra à direita. Logo no começo da Álvaro de Carvalho você se depara com um portão do lado direito da rua. Tal qual um portal, ao passar por ele entrei em um mundo diferente em tudo do que acontece do lado de fora. Por uma tarde vivi o sonho utópico de integração e vivência em comunidade. Em muitos momentos, esqueci das dificuldades, das porradas, dos incêndios, das ameaças e de todos os perrengues que passa quem precisa de um lugar pra morar em uma grande cidade. Ainda mais uma descomunal como é a capital paulista.

A Ocupação 9 de Julho, onde ocorreu essa epifania, é tocada pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), ligado à Frente de Luta por Moradia (FLM). No antigo e ABANDONADO prédio do INSS, hoje residem 121 famílias. Está ocupado desde outubro de 2016 e o local esbanja organização.

Cheguei lá em um domingo (20 de maio) de Virada Cultural na cidade e a ocupação também promovia seu evento. Em uma parceria de longa data, o pessoal do Coletivo Aparelhamento tomava conta da cozinha comunitária e promovia oficinas de pintura para crianças e adultos de toda sorte.

“A contribuição que eu dou é transformar pessoas que estavam totalmente arrebentadas socialmente, financeiramente. Arrasadas e até com depressão. E mostrar que ela é capaz. Isso é resultado de um coletivo, de uma união, que tem como propósito o desenvolvimento humano”

Uma das lideranças é Carmen da Silva Ferreira, ou Dona Carmen. Ela, como todo o movimento, é alvo de difamação da imprensa paulistana, acusados de cobrança de mensalidade dos moradores. Mas, poxa, como já mostramos aqui, em matéria sobre ocupações em BH, esse dinheiro é a única base de sustentação da manutenção e administração das estruturas comunitárias.

Dona Carmené de uma personalidade ímpar, forte, da luta, e que não se deixa derrubar com qualquer conversa, venha do bairro do Limão ou da Barão de Limeira (curiosa essa coincidência do azedume presente nos endereços das duas maiores redações de São Paulo).

“A contribuição que eu dou é transformar pessoas que estavam totalmente arrebentadas socialmente, financeiramente. Arrasadas e até com depressão. E mostrar que ela é capaz. Isso é resultado de um coletivo, de uma união, que tem como propósito o desenvolvimento humano”, diz ela, com a tranquilidade de quem sabe o que faz e faz há muito tempo.

Foto por Jeroen Stevens

Dona Carmen tem noção de que ainda vai tomar muita porrada e está preparada para isso. Os duros anos vividos criaram calos para administrar as calúnias e os ataques dos poderosos. Ser uma liderança popular, no sentido de estar com seu povo, não é fácil. “Lidar com o coletivo é lidar com uma grande família. Tem a hora da bronca, do afago, do vamos juntos. Tem que ter pulso, senão a coisa cai. É lidar com família. Às vezes odiada, às vezes amada, e assim vai”.

Outra faceta impressionante de Dona Carmen é sua capacidade de entender o todo. Por estar à frente de uma coisa tão séria e estigmatizada como os movimentos de ocupação, ela sabe muito bem como o jogo é jogado.

Só a FLM é integrada por mais de 10 mil pessoas que ocupam imóveis. Em São Paulo, são mais de 600 mil que precisam de moradia. Não é um jogo para inocentes. É sério. É perseguido e, para estar dentro, é preciso estar disposto a virar alvo. Da imprensa e da bala. Das mentiras e do gás. Na prática, não cabe muito coisa de utopia. É asfalto, é concreto, é repressão e é política.

Foto por Jeroen Stevens

“A política é uma das coisas mais importante na vida do cidadão. O que acho errado são os caciques e os planos de governo que não são cumpridos. Mas dentro de casa é política, andar na rua é política. A vida em sociedade é política. A política partidária é importante e é ali que cidadão se reúne pra discutir organização, melhoria, cidadania. É a política que faz com que o termo organização abranja um coletivo maior. Para consolidar o cidadão”, diz Dona Carmen.

“Lidar com o coletivo é lidar com uma grande família. Tem a hora da bronca, do afago, do vamos juntos. Tem que ter pulso, senão a coisa cai. É lidar com família. Às vezes odiada, às vezes amada, e assim vai”

Foi essa visão ampliada de cidadania que encontrei naquele 20 de maio, véspera do primeiro dia de paralisação dos caminhoneiros, movimento que deixou o Brasil arriado e nos escancarou um monte de verdades com as quais consegui fazer paralelos interessantes com o que vi na ocupação. Verdades sobre a sociedade, sobre a empatia das classes média e rica, que se mostram incapazes de um gesto de, vamos dizer, entendimento quando o assunto é ocupação de prédios abandonados por conta de especulação imobiliária. Nem digo simpatia. Seria pedir demais para um pessoal que não consegue ser simpático nem com professor em greve.

Mas, disse lá em cima, naquele dia 20 o que vi me pareceu outro mundo. A realização de um sonho e a ocupação 9 de Julho como um farol. Como um sonho a ser seguido.

Foto por Jeroen Stevens

Uma feijoada pra lá de boa era servida aos moradores e aos visitantes e temperava a alquimia. São Paulo é uma cidade muito curiosa em vários aspectos e era engraçado ver os hipsters no meio daquilo. Mas, aí entra a parte boa. Eram eles com moradores, com famílias, com pessoas que estavam passando ali. E, claro, tinha a fila, essa instituição paulistana que mereceria todo um parágrafo para si.

Foi bonito acreditar, foi bonito viver, mesmo que por umas poucas horas, esse sonho. Esse sonho que quero ver se tornar realidade. Temos um golpe no caminho. Temos o crescimento do pensamento reacionário no caminho. Mas, passar vinte minutos escutando Dona Carmen, comer aquela feijoada, acompanhar a Cinthia Marcelle e a Sarah Ramo pintando faixas com a meninada, e ver que tá tudo ali. Está tudo ao alcance dos nosso sonhos.

 

Por Rafael Mendonça

Fonte: Jornal O Beltrano