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Crianças e adolescentes pobres, trabalhem! Porque só o trabalho liberta

20 de abril de 2017

Fonte: Blog do Sakamoto

O Brasil é um dos países com maior taxa de jovens estudantes entre 15 e 16 anos que também trabalham, de acordo com dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), divulgados nesta quarta (19).

Ao todo, 43,7% desses jovens brasileiros exercem atividade remunerada antes ou depois da escola. Mais do que nós apenas a Tunísia, Costa Rica, Romênia, Tailândia e Peru. Muito longe da Coreia do Sul (5,3%), que é sempre usado por políticos daqui como exemplo em educação.

Segundo a pesquisa, estudantes que trabalham tendem a ir pior em avaliações de ciência, a abandonar os estudos antes do final do ensino médio e chegar atrasado ou faltas às aulas.

Acompanhei a história de um jovem operário de 16 anos que morreu, há alguns anos, soterrado em uma obra em um sobrado antigo no bairro do Cambuci, Centro de São Paulo.

O artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. O serviço na construção civil é considerado trabalho perigoso de acordo com a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho.

Mesmo assim, ele estava lá. E morreu.

Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional tramitam propostas para reduzir a idade legal a menos de 14 anos.

Lendo os argumentos das propostas sobre o tema, tenho alguns arrepios na coluna. Por exemplo, o deputado federal Celso Russomano, declarou que o rebaixamento da idade mínima poderia mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Em bom português: já que o Estado e a sociedade são incompetentes para impedir que seus filhos e filhas dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar o trabalho infantil.

E qual seria o próximo passo quando o mercado e a competição global abocanharem trabalhadores cada vez mais jovens? Reduzir a idade para dez?

Poderíamos legalizar uma série de situações em que há um descompasso entre a lei e a realidade. Deixaríamos de ter, em um passe de mágica, a exploração sexual de crianças e adolescentes (o que agradaria o então vereador Agnaldo Timóteo, que defendeu que meninas trabalhem nessa área se tiverem ”peito e bunda”), o trabalho escravo, o tráfico de seres humanos.

O trabalho deveria fazer parte da formação pessoal desde que não afetasse o crescimento do indivíduo. Hoje, muitas empresas empregam pessoas de 14 anos para fazer atividades de gente de 18 – ou, no caso da obra, 16 por 18. Usam como justificativa que treinam aprendizes, mas na verdade usam mão de obra barata. Imagine, então, com a anuência constitucional para baixar a idade?

Qual a mensagem que o Brasil deseja passar com isso? Que dessa forma, com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas que saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida. Ou seja, como diria o Pink Floyd, serão um bom tijolo no muro

Se tivermos que alterar algo prefiro ficar com a proposta do então presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, que defendeu o aumento na idade mínima legal para se começar a trabalhar no Brasil. Ele afirmou que filhos de famílias ricas raramente começam a trabalhar efetivamente antes dos 25 anos de idade – e depois de muito investimento e tempo de formação. Enquanto isso, filhos de pais pobres são condenados a começar a trabalhar cedo, não conseguem evoluir em termos de formação e acabam ocupando postos de baixa qualificação e mal remunerados que compõem a base do mercado de trabalho.

Alguns relatos que fui colhendo em reportagens que realizei pelo país: governo federal encontrou 30 crianças escravizadas, entre um grupo de adultos, no município de Placas (PA), em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica. Fazenda de cacau. Uma das crianças ficou cega após acidente de trabalho. Ela estava carregando o cacau, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. A maioria das crianças estava doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru.

Um outro grupo de 30 crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, trabalhava na colheita de limão em condições precárias e com atraso de salário em Cabreúva, a cerca de 70 km da capital de São Paulo. A sorte deles só mudou graças a um adolescente resolver sair e denunciar à Polícia Militar que não estava recebendo remuneração pelo serviço. Passavam fome e frio.

Uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego encontrou mais de 25 crianças e adolescentes em matadouros públicos nos municípios de Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi, no Rio Grande do Norte. Muitos trabalhavam com os pais no descarnamento de bois e curtimento de couro sem nenhum equipamento de proteção, pisando descalços sobre o sangue derramado, com uma faca na cintura. Uma menina, de 15 anos, que retirava esterco das tripas disse que recebia em produtos para levar para casa. ”Em alguns casos, o pagamento é em comida que você dá normalmente para o cachorro”, afirmou a coordenadora da ação de fiscalização.

Dentre trabalhadores libertados da escravidão em uma fazenda de gado no Pará, um rapazinho de 14 anos, analfabeto, me contou que morava em uma favela na cidade com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Foi dado de presente pela mãe aos três anos de idade e trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – afinal de contas, já havia pegado uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também comprava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não é tão divertida assim. “Brincadeira lá é muito pouca”, explicou ele.

E tem a história de Pedro, que perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Analfabeto, permaneceu apenas dez dias em uma sala de aula por causa da ação de pistoleiros no povoado onde ficava a escola. Depois, nunca mais. Passou fome, experimentou dengue e por dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. “Trabalhar com serra é o jeito. Senão, a gente morre de fome.” Não sabia a data do seu aniversário e nem o que se comemorava no dia 1º de maio, dia em que foi encontrado pela equipe do Ministério do Trabalho e Emprego durante fiscalização na fazenda. Tinha 13 anos.

Passado um primeiro momento de grande arrancada na prevenção e eliminação do trabalho infantil no Brasil, do início dos anos 1990 a meados dos anos 2000, o país enfrenta um novo desafio para manter o ritmo de queda. Enquanto a primeira fase foi marcada pela retirada de crianças e adolescentes das cadeias formais de trabalho, o novo desafio são as piores formas, que o poder público tem mais dificuldade de alcançar. Que inclui o trabalho informal (como vendedores) ou ilegal (como o tráfico de drogas) urbano, a exploração sexual, o trabalho domésticos e algumas formas de trabalho rural. Precisamos ir além. Difícil, num momento em que damos passos para trás.

Por fim, algo que vale repetir: até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita.

Mas será que eles não imaginam que o trabalho que atrapalha o desenvolvimento da criança e do adolescente não precisa ser hereditário?

O mais triste de tudo isso é ver parte dos trabalhadores, que foi acostumada a ser explorada, passando a justificar a própria exploração e a de seus filhos, dizendo que quem pega duro desde cedo cresce com caráter lapidado, repetindo bovinamente um discurso que a eles foi reservado: só o trabalho liberta.